A vergonha - Annie Ernaux
“Na vergonha há o seguinte: a impressão de que agora tudo pode acontecer com você, de que nunca haverá uma trégua, que mais vergonha vai se somar à vergonha.”
Título: A vergonha
Autor: Annie Ernaux
Tradutor: Marília Garcia
88 páginas
Editora Fósforo
⭐⭐⭐⭐⭐
“Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde”: é com essa pedrada que Annie Ernaux começa A Vergonha. Recomecei a leitura desse livro três vezes antes de finalmente conseguir terminar. Esse início pode te levar a pensar que o conteúdo sensível (violência doméstica, o papel da mulher na sociedade, a submissão da esposa ao marido, etc.) foi o que me fez ter dificuldade para concluir a leitura, mas isso não poderia estar mais longe da verdade. O conteúdo do livro é banal: a autora relembra o fim de sua infância e relata sua vontade de agradar as professoras, como sua família organizava a casa e o pequeno comércio que administravam, a ansiedade para menstruar pela primeira vez e começar a usar roupas mais adultas e outros acontecimentos típicos da vida de qualquer pré-adolescente. Mas, se não foram os temas sensíveis, o que tornou a leitura tão difícil?
É chover no molhado afirmar que Annie é especialista em dizer muito com poucas palavras. Ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura 2022, a autora raramente publica livros com mais de 100 páginas. Mas tenho a forte impressão de que esse “muito” que é dito em seus livros provém do leitor. Ela escreve como uma bruxa: ao recitar as memórias dela, invoca o poder de materializar seus fantasmas. Depois de algumas páginas, frequentemente me pegava encarando o horizonte com o olhar perdido. Não pensava na relação da autora com a religião, com os pais, com a escola ou com o bairro em que ela cresceu, mas nas minhas experiências pessoais com esses temas. Não foi agradável me encontrar nas páginas escritas por uma mulher que nasceu em uma época diferente, em um país diferente, em uma cultura diferente e com perspectivas talvez não tão diferentes das minhas.
[é aqui que eu encarno a millennial-básica-narcisita-so tell me everything is not about me... but what if it is?] Quando decidi finalizar a leitura, estava no terraço (que não é bem um terraço) do aeroporto de Confins, olhando os aviões decolando, pousando e manobrando. Ao meu redor, pessoas com peles perfeitas arrastavam malas caras com uma mão e seguravam o iPhone com a outra. O fato de todos parecerem confortáveis, seguros e bem ajustados fez com que eu me sentisse desqualificada para habitar aquele lugar. Tinha certeza que algum segurança iria me abordar e dizer “senhora, o cheiro da sua pobreza está incomodando os passageiros, você pode se retirar sem fazer um escândalo, por favor?”. Não importava o quanto eu tentasse me lembrar de que não sou importante ao ponto de alguém reparar em mim e que esses pensamentos eram fruto da ansiedade social: aquela angústia morava embaixo da minha pele, fazia parte de mim e não podia ser removida.
Coincidentemente, o livro também narra uma viagem. Annie e seu pai participam de uma excursão organizada pela empresa de ônibus da cidade. Eles visitam os lugares turísticos de Lourdes, passam as noites em quartos de hotéis e frequentam restaurantes. No relato dela, reconheci meu desconforto: a sensação de não pertencer, de não ter as roupas certas, de não saber se comportar e de sentir vergonha de si mesma o tempo todo. “Era a primeira vez que convivíamos de perto, durante dez dias, com desconhecidos que eram todos, com exceção dos motoristas de ônibus, melhores que nós”, ela escreve.
O mais agoniante é que essa sensação se perpetua. Annie diz que depois que seu pai tentou matar sua mãe a inadequação, que ela traduz simplesmente como “a vergonha”, se enraizou profundamente em seu ser. Não importava o quanto ela se esforçasse para se tornar digna: como não era possível voltar no tempo e mudar aquele acontecimento, suas origens e sua criação, ela nunca se sentiria parte de uma vida diferente daquela que levava na infância. A vergonha sempre a acompanharia.
“Era normal sentir vergonha, como se fosse uma consequência inscrita na profissão dos meus pais, nas dificuldades financeiras que eles tinham, em seu passado como operários, em nossa forma de viver. Na cena daquele domingo de junho. A vergonha se tornou, para mim, um modo de vida. No fim das contas, já nem percebia sua presença, ela estava em meu próprio corpo.”
Encontrar um retrato de mim mesma naquelas páginas tornou a leitura incômoda. Isso não aconteceu só nos trechos sobre a viagem, mas também quando a autora fala sobre o bairro onde morava e como as pessoas daquele lugar se comportam (“Aqui nada é pensado, tudo é cumprido”), sobre a relação que tinha com a religião (“Acreditar e ter a obrigação de acreditar eram a mesma coisa”) e com a escola (“Dizem, referindo-se a mim, a escola é tudo para ela”) e sobre a inocência de acreditar que apenas ela carrega esses sentimentos (“O pior da vergonha é que achamos que somos os únicos a senti-la”).
De forma seca, cortante como um golpe de faca, a autora mostra o cotidiano se convertendo em questões que nos perseguem durante toda a vida. É brilhante ver como ela consegue fazer relações diretas entre eventos e sensações e, na mesma medida, é amedrontador se identificar com tudo isso. Como sou do tipo que gosta de leituras que machucam, dei cinco estrelas para o livro e recomendo a leitura afinal, se essa querida ganhou um Nobel de Literatura é porque deve ter mais gente por aí que usa livro como instrumento de autoflagelação.
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